Por Luis Mendonça Espinha
Excerto do portefólio, do R. V. C. C. do secundário, concluído a 8 de Outubro de 2009, através do C. N. O. da Escola Secundária, Engenheiro Calazans Duarte, na Marinha Grande.
E tudo começou a 9 de Fevereiro, de 1963, algures numa colónia ultramarina…
Do que não me lembro e por isso não me conheço, desse tempo ficam apenas algumas dicas do percurso que fiz ao colo dos meus pais, que haviam contraído matrimónio em 1961, no lugar de Palanca, uma pequena povoação a sudoeste de Sá da Bandeira, hoje denominada de Lubango.
Huíla, (e já nesse tempo as populações indígenas denominavam a cidade como Huíla ou Lubango, enquanto que os colonos portugueses chamavam Huíla como nome do distrito).
Entretanto, o meu pai foi colocado em Nova Lisboa, actual Huambo, também aqui adoptariam o nome da província para nome da cidade.
O meu pai era polícia nessa altura, mas só “conseguiu” ser polícia durante 4 anos. Entretanto rebenta a chamada guerra colonial em 1961 e em 1963 nasce aquele que hoje escreve, o primogénito. Eu fui um bebé doente, o que obrigava a grandes deslocações dos meus pais à capital da província (Luanda) para consultas médicas. Esta situação associada a um baixo rendimento, levou a que o meu pai optasse por abandonar a polícia e passasse a ser comerciante em Sá da Bandeira. Estamos em 1965 e entretanto, nasce o meu primeiro irmão. A guerra continua lá longe no Norte e Leste de Angola e eu já tinha 2 anos de idade.
Damos agora um salto no tempo e avançamos até à idade dos meus 6/7 anos, que me parece ser a idade que a minha memória alcança e que me permite lembrar que tinha um elemento masculino na família que tinha uma forma de brincar comigo que eu não apreciava especialmente, pois ele puxava-me os cabelos, para me chatear. Só mais tarde, muito mais tarde, consegui associar às minhas recordações quem era essa pessoa que eu “nunca quis” memorizar, através de uma conversa em família, na qual eu abordei este assunto. Não deixei de vociferar contra o tio, que afinal até é um bom rapaz!
Do tempo dos primeiros passos na escola, uma escola primária que se situava muito perto de minha casa, recordo com muita saudade o meu “primeiro amor”. Menina alta e muito, mas mesmo, muito magra, a Isabel…acreditem que eu me lembro de lhe afagar o cabelo embevecido com a sua anuência. Ainda neste período e nesta escola aconteceu algo de trágico. Morreu alguém da escola, não me recordo quem, mas que morava perto da escola e que os mais velhos não me deixaram ver o defunto.
Esta escola ficava num topo da praça Luís de Camões, ficando a minha casa no topo oposto. Numa lateral era o liceu e na lateral oposta havia sido construída recentemente uma igreja, onde eu frequentava a catequese. Foi ainda neste tempo que os meus pais e os meus tios e ainda um primo deles, tinham o hábito de se reunir em família numa quarta-feira por mês, alternadamente em casa de cada um, onde as senhoras se entretinham com a conversa e a fazer malhas e croché, as crianças brincavam com os últimos brinquedos que o anfitrião tinha recebido e os homens jogavam à sueca, comiam caju, palitos salgados e bebiam whisky com 7up. Eram serões muito agradáveis, em que o tempo voava, ficando sempre a pena de termos de ir embora. Mas, mesmo inesquecível, era a ida ao futebol ao domingo para ver o Sporting de Sá da Bandeira jogar. Eu, agarrado ao meu pai, qual siamês agarrado à sua progenitora, mas sentados numa Kawasaki 50, com os meus curtos braços, esforçava-me para não cair da motorizada, tentando abraçar a barriga ( já proeminente) do meu pai. Numa destas viagens a coisa correu mal, pois escapou-se-me um pé do estribo e encostei a perna ao escape. Foi cicatriz que levou alguns anos a desaparecer.
Lembro-me de mim como uma criança engenhosa, com grande imaginação na construção de brinquedos, mas algo introvertida. Dos meus 9/10 anos não me lembro de nenhum colega de escola, a não ser da minha “amada” Isabel, nem me lembro de brincar com o meu irmão que tinha apenas menos dois anos que eu, com excepção para os jogos de hóquei sem patins que jogávamos os dois num pequeno espaço cimentado que não tinha mais de dois metros quadrados. As balizas eram a porta de casa e o portão do muro que circundava a casa. Estranho….talvez!
Mas lembro-me perfeitamente dos meus primeiros negócios a sério. Tínhamos sempre muitos pés de couve plantados no quintal, que era todo murado, onde havia também árvores de fruto. Então, vendíamos folhas de couve, 100% frescas, pois eram colhidas no momento conforme o cliente pedia. As mulheres negras, de passagem pela rua, chamavam por alguém, dizendo algo com esta leitura sonora: «Tchindêrê» que penso querer dizer «branco ?». Eu perguntava-lhes que quantidade queriam de couve, e já nessa altura existia aquilo a que chamamos hoje de inflação, pois se a época era de pouca couve, levavam menos pelo mesmo dinheiro, que variava entre um angolar e um angolar e cinquenta centavos, o molho.
Agora falarei do João! Quem foi o João?
O João foi o irmão mais velho que eu não tive, e talvez por isso não brincasse muito com os meus irmãos que eram mais novos!?
O João era um rapaz mulato, que trabalhava para os meus pais. Alto, espadaúdo, bonito até! Não sei qual a sua origem, sei apenas que de “criado” tinha pouco, pois comungava da nossa mesa, os meus pais obrigaram-no a estudar, vestiam-no e calçavam e era muito meu amigo. O senão da história é que ele tinha um quarto só para ele, mas era nos anexos da casa. Que pena hoje tenho de fazer parte de uma geração, descendente de outra que já naquele tempo começava a apregoar a igualdade, mas que hipocritamente metia os “Joões” no anexo e hoje continua a metê-los nos contentores. O João chorou algumas vezes a conversar comigo, mas a minha capacidade de compreendê-lo ainda não era suficiente para absorver e ajudá-lo nas piores horas. Ele não era, nem nunca foi, maltratado, usava de toda a liberdade nas horas em que não havia trabalho, que no fundo também não matava. Tratava dos animais, da horta, do pomar e fazia alguns recados. O João tinha apenas 16 anos, quando eu fiz 10 anos. E certo dia chegou a casa, já noite dentro após o seu passeio, todo marcado e com uma ferida na cabeça. Tinha-se metido em sarilhos! Fomos com ele para o hospital e, desde então, o João tornou-se uma pessoa muito fechada. Lembro-me de a minha mãe tentar conversar com ele, mas era difícil. Nunca soubemos o que aconteceu. Entretanto decorria o ano de 1972 e a profissão do meu pai era, nesta altura, a de camionista. Tínhamos uma camioneta Ford D400 verde. Toda verde! Linda! O meu pai fazia distribuição de bens alimentares e na primeira sexta-feira de cada mês fazia entregas nas lojas que havia espalhadas, pelas aldeias e lugares das zonas periféricas da cidade, e quando falo em zonas periféricas, em Angola, falo de centenas de quilómetros em plena mata africana. Nessas lojas os brancos tinham os seus negócios, onde exploravam a seu belo prazer os negros em trocas comerciais de produtos, em que os nativos ficavam sempre a perder, mas convencidos que tinham feito um bom negócio. Havia muito pouco dinheiro e, então, traziam milho, tabaco, cera, mel, animais de galinheiro e, às vezes, gado bovino ou caprino para trocar por açúcar, sal, óleo, farinha, banha e bebidas licorosas.
Durante os períodos de férias escolares, eu não perdia uma viagem destas com o meu pai e foi aí que “fui obrigado” a aprender a gostar da música de acordeão, pois aquele leitor de cassetes não parava de tocar os corridinhos de Maria Albertina e seu acordeão.
Normalmente, partíamos à sexta-feira e só regressávamos ao domingo. Numa dessas viagens tivemos um problema. Ficámos atolados no barro, numa daquelas picadas que já tínhamos ultrapassado dezenas de vezes sem problemas, mas naquela noite ficámos lá presos. Solidários, aproximaram-se alguns negros, saídos do nada no escuro da noite, no meio da selva africana. Naquelas condições, hoje em plena Amadora ou similar, teríamos sido linchados e a camioneta despojada de toda a sua valiosíssima carga e incinerada de seguida. Felizmente esse ódio não existia, pelo contrário eles sabiam da importância que tinha aquele transporte ser feito. Prontificaram-se a ajudar e foram buscar duas juntas de bois à sua sanzala. Um telemóvel, naquela altura, vinha a calhar! Mas ainda bem que não era o tempo do telemóvel pois também não haveria junta de bois!...se calhar nem Espinha para o RVCC!
Conseguimos desatascar a camioneta com a preciosa ajuda dos negros. Seguimos viagem, não sem antes o meu pai presentear os ajudantes com alguns produtos que levava à consignação. Era já madrugada dentro quando chegámos àquele que seria o nosso destino, no início da noite, para passarmos a noite. Tratava-se de um velho amigo e cliente de meu pai que nos dava normalmente asilo na noite de sexta-feira. Todos enlameados, lá comemos alguma coisa e descansámos 3 ou 4 horas. Enfim, noite para recordar sempre!
Eu também tinha família fora da cidade, no meio do mato e, de vez em quando, passávamos lá um fim-de-semana, para irmos à caça à noite, digo irmos porque eu também ia. Caçar à noite, no meio da mata, quilómetros e quilómetros percorridos no Land Roover, sem G.P.S…. Só se atirava à caça grossa, um coelho só era morto no regresso, se a noite tivesse corrido mal.
Um tio meu ofereceu-me uma arma vulgarmente chamada de Pressão de Ar, quando eu ainda não tinha feito os meus dez anos. Pasme-se! Hoje, eu não daria a um sobrinho meu tal objecto, mas se o fizesse nunca seria antes dos 18 anos, e mesmo assim com algumas reticências. De facto, eu devia ser um menino muito responsável. Só pode ser! Recordo-me de me embrenhar sozinho mata dentro, num desses fins-de-semana, em casa dos meus tios, na Capunda, mais de duas horas, cruzei-me com negros e suas proles, saudávamo-nos uns aos outros, eles armados com suas catanas e zagaias (arma de arco), eu com a minha pressão de ar, mas que só eu sabia ser apenas uma arma de chumbo de calibre 4.5, pouco mais que uma fisga. Cheguei a um descampado com muito capim, pontuado aqui e ali com pequenas árvores, onde corria um pequeno riacho. Eram tantas as rolas e pombos bravos que ali estavam para saciar a sede que eu, qual atirador, nervoso com o espectáculo de tanta fartura, não consegui acertar numa que fosse.
Que vergonha! Quando regressei estava tudo calmo, ninguém estava preocupado com a minha ausência prolongada, e eu apenas trazia um papagaio moribundo com uma chumbada, que eu lhe tinha dado, tentando em vão salvá-lo, pois tão belo era o exemplar, quanto o arrependimento que me invadia a consciência.
Em casa deste meu tio havia sempre carne de caça seca, em tiras que, quando eram postas em cima das brasas, começavam a contorcer-se como se fossem cobras. Era um pitéu muito apreciado e muito picante também. Ainda em 1972, já no final do ano, mudámo-nos com armas e bagagens para a cidade de Moçâmedes, actualmente denominada de Namibe. Esta cidade situa-se no extremo sul da costa atlântica de Angola, definindo praticamente a presença humana nesta zona do país, na fronteira do deserto do Namibe, deserto este único no mundo, pois só nele se pode encontrar uma planta chamada Welwistchia Mirabilis.
Na zona para onde fomos viver existia um porto de águas profundas, onde apenas atracam grandes navios de transporte de minério, semelhantes aos grandes petroleiros, mas com porões secos. Estes navios atracavam sempre vazios e quando entravam na baia pareciam autênticos prédios flutuantes, com dezenas de metros fora de água, nunca com menos de 150 metros de comprimento e saíam carregados de minério de ferro, afundados no oceano, ficando de fora apenas uma pequena franja do navio, que à distancia mais não pareciam que enormes jangadas. O Saco Mar era um bairro de pescadores, mas principalmente de ferroviários, que trabalhavam no terminal ferroviário, que abastecia o sistema de tapetes rolantes, que carregavam os navios. Esta linha de caminhos-de-ferro tinha origem na zona da Jamba, onde eram as minas de ferro. Chegavam aqui enormes composições com 80, 90 vagons e às vezes ainda mais, todos os dias, com esse minério.
Recordo-me especialmente de dois colegas, o Jorge Cebola e o Eusébio. O Jorge era branco e tinha com ele as maiores brigas por causa da Manuela; o Eusébio era negro e disputava com ele a primazia do melhor aluno da sala. Modéstia à parte eu era o melhor aluno e ele tinha a melhor caligrafia. Ele desenhava as letras, confesso que o tentava imitar! Foi nessa escola que aprendi o Hino Nacional, com sessões fixas ao sábado, mas não só, foi aí que aprendi a tabuada, que ainda hoje sei de fio a pavio, os rios, caminhos de ferro, distritos e províncias da Metrópole e das províncias ultramarinas, etc. etc. Também nesta escola tive a oportunidade de fazer a minha primeira representação de teatro, fazendo o papel de Camões da zona.
No Saco Mar não havia igreja, então foi adaptado um pavilhão de uma água que lá existia e onde durante muito tempo fizemos corridas de carros de rolamentos, corridas de miniaturas de automóveis, em pistas marcadas com giz que “pedíamos emprestado” à escola. Perdemos o nosso espaço, mas ganhamos uma capela. Fiz lá a minha 1ª comunhão.
Entre a loja do meu pai e o porto de mar havia uma pequena quinta que era do meu tio Amadeu, onde basicamente eram cultivadas a oliveira e a videira para uva de mesa. Nunca vi cachos de uvas tão grandes como aquelas que ali se produziam. O meu tio também negociava em peixe seco que distribuía para todo o país, em caixas feitas de finas tábuas e cintadas com fita de aço, caixas essas que tinham aberturas entre tábuas enormes, apenas não permitindo que o peixe caísse. Ficava assim o produto à mercê de toda a imundice, mas que aquilo, passado rapidamente pelas brasas e comido com pirão, era bom, lá isso era! Não havia A.S.A.E…. nem necessidade de a criar! Havia pleno emprego, por isso as pessoas estavam ocupadas na sua vida e não havia necessidade de criar mais um organismo para “dar emprego à família ou amigos”.
Quando visitávamos os meus avós paternos, eu imediatamente ia fazer uma visita ao mato à procura de frutos silvestres, que na zona mais árida de Moçâmedes não havia e aquilo que hoje encontramos nas grandes superfícies com o nome de Physalys a um preço exorbitante importado da América do sul, não é mais nem menos aquilo a que em Angola chamávamos de «matipas». Hoje também já se encontram plantas cá e que se dão muito bem. Tinha também o hábito de sair à noite e ir ter com os negros, na sanzala, onde tocavam e dançavam e que já me conheciam como o neto do patrão.
O meu avô para além de uma grande propriedade agrícola, tinha muito gado bovino e suíno. Alimentava os animais com aquilo que a terra dava, e então usava grandes panelas feitas de metade dos latões de 200 litros, para cozer batatas, couves e cereais numa “caldeirada” para porcos, mas que eu não resistia em provar, tirando uma batata, queimando os dedos para lhe tirar a pele e, sem que ninguém visse, lá saboreava o manjar.
Voltando a Moçâmedes, no ano lectivo de 1974, já eu frequentava o 1º ano do ciclo preparatório, deslocávamo-nos de comboio, que era puxado por uma máquina a vapor, numa contradição tecnológica enorme em relação às máquinas que traziam os comboios de vagons carregados de minério de ferro. Às vezes com 120 vagons acoplavam 3 máquinas serpenteando a planície para cá do início do planalto central que começava na Serra da Chela, já no distrito da Huíla.
Entretanto, dá-se aquilo a que os historiadores políticos convencionaram chamar “Revolução de Abril”.
Para a verdadeira história de Portugal e de África, ficarão também as consequências de um processo mal conduzido, uma descolonização precipitada e irresponsável, levando a que milhares de pessoas retornassem à Metrópole e outros milhares viessem como desalojados, não de uma guerra, mas sim “Desalojados de Abril”, e que milhões de africanos tivessem décadas de sofrimento que nunca tinham experimentado antes do 25 de Abril de 1974. Foram mais de 30 anos de fuga de africanos para a Europa, esvaziando aqueles países dos melhores quadros que possuíam, à procura de melhores condições de vida. Aparentemente, a primeira década do novo século marcará o ponto de viragem, em que o fluxo migratório terá um retrocesso e, entretanto, as antes colónias portuguesas têm sido novamente colonizadas por outros, como por exemplo, os Chineses, depois de os Russos e Cubanos terem deixado a sua mestiçagem durante os anos 70 e 80, principalmente em Angola.
Tomada a difícil e sempre adiada decisão, começaram os preparativos para deixarmos Angola. Começaram os serrotes e martelos a trabalhar, fazendo caixotes de enormes dimensões onde foram embaladas mobílias inteiras. Depois de despachados todos os caixotes e dois automóveis por via marítima, ficámos a aguardar que chegasse a nossa vez de partir. Quase todos os dias nos deslocávamos ao porto comercial de Moçâmedes para nos despedirmos de amigos que embarcavam para Luanda. Numa dessas despedidas ficou parte de mim, quando a minha “namorada” partiu. Só voltei a ver a Manuela uma vez em Portugal, muito mais tarde e sei que hoje se encontra no Canadá.
Chegada a nossa hora de partir, dirigimo-nos para o porto, onde o meu pai fez a entrega das chaves de casa e ofereceu-a, assim como a camioneta e tudo o que não pudemos despachar, a dois amigos, um de Cabo Verde e um português, de forma a que eles aproveitassem para explorar o resto do negócio, enquanto houvesse algo para vender, embora cada vez houvesse menos. Com a chegada de pequenos barcos de pesca, cheios de refugiados esfomeados do norte de Angola, tinham simplesmente dizimado tudo o que ainda havia para comer. Lembro-me perfeitamente de eles até a água das latas de salsichas beberem. Mais tarde, tivemos conhecimento que tinham abandonado Angola, via África do Sul, pois a ponte aérea já tinha terminado e a guerra estava instalada, sob os améns do acordo de Alvor.
Embarcámos num cargueiro, a meio da tarde e a minha única bagagem era uma caixa de sapatos, onde trazia dois pássaros, que a meio da viagem haviam de fugir e perder-se no mar. Centenas de pessoas espalhadas pelos porões procuravam o melhor sitio, se é que isso era possível, tal era o barulho ensurdecedor das máquinas. Depois de uma viagem barulhenta, acostámos no porto de Luanda no dia seguinte, ao início da tarde. Fomos levados para o aeroporto, onde no meio de centenas de fardos de mantas pretas, mais parecíamos um acampamento de ciganos, em que cada um fazia a sua tenda. Entretanto, caía a noite e a alimentação que nos era dada era, para mim, muito estranha. Sandes enroladas em sacos de plástico….percebi, mais tarde, tratar-se da comida que era fornecida nos aviões.
Pela madrugada fomos acordados, porque chegara a hora de embarcarmos. Naquele aeroporto só se via gente de um lado para outro, cada um tentando resolver o seu problema. As lágrimas entre os adultos eram o estado de alma comum. Já na despedida de Moçâmedes, quase em uníssono se chorou, ao ver a nossa terra a ficar para trás, desaparecendo no horizonte, onde acabamos por ter e guardar novas imagens, de perspectivas diferentes daquilo que conhecemos em terra firme. Terra que viu nascer os meus avós maternos, que eram descendentes de Madeirenses, que tinham aportado no sul de Angola, terra que recebeu o meu pai com um ano de idade, terra a quem os meus avós paternos deram mais de trinta anos de vida. Mas também foi a terra que nos viu nascer, e onde recebemos aquilo que será sempre parte de nós e da nossa memória. Hoje, já quarentão, não abdico dos ritmos africanos, do gingar que apenas aos nativos fica bem, dos tambores na noite africana. A marca africana contagia mesmo aqueles que nunca pisaram terra abaixo do paralelo 30˚. A vinda de milhares de africanos para a Europa, trouxe também uma cultura desconhecida, com um especial perfume, que nos chega através da música, da escrita, da pintura, da escultura. Escritores como José Eduardo Agualusa, Agostinho Neto, Ana Paula Tavares (poeta) ou Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (Pepetela), a arte da “máscara azul de Angola”, máscara de madeira com grande importância em rituais culturais, representando a vida e a morte, a passagem da infância à vida adulta, a celebração de uma nova colheita ou o começo da estação da caça. A música onde a presença do Semba, Kuduro ou a Kizomba já são realidades incontornáveis, que representam o lado bom da abertura de Angola ao mundo, em consequência da sua independência política. Quando a promoção turística em Angola acontecer, então teremos um colosso na sua plenitude, podendo mesmo vir a liderar as influências politicas subsarianas naquele continente.
15 de Outubro de 1975, chegámos a Lisboa, depois de uma paragem técnica em Abidjan ( Costa do Marfim). Foi ao princípio da tarde em que, ao pôr o nariz fora do avião, tive a sensação de ter entrado numa câmara frigorífica. Imagine-se gente africana, com roupas leves, a aterrar em Lisboa em pleno Outono!
Depois das peripécias todas com o desembarque, foram entregues dez mil escudos ao meu pai para as “primeiras impressões”. O meu pai tinha uma carta de chamada para vir para Leiria, através de uma irmã da minha mãe, onde viríamos a ficar cerca de um ano e meio, instalados num pavilhão da, então, Prisão Escola de Leiria. Milhares foram para pensões e hotéis durante anos, mas os meus pais preferiram enfrentar a situação, procurando imediatamente trabalho. Viemos três famílias, juntas desde Angola, uma delas era a do sócio do meu pai em Angola, numa fábrica de pastelaria e geladaria.
Na Prisão Escola trabalhava o meu tio como caseiro e eu, sortudo, tive acesso ao Colégio Interno dos Maristas que hoje é o edifício da P.J., nos Pousos. Por 500 escudos mensais tinha tudo, menos a companhia da família, que só via uma vez por mês. Não foi fácil adaptar-me, mas mais difícil foi para os meus pais e irmãos que passaram fome, mesmo fome! O pouco que tinham para comer era-lhes oferecido pela instituição, que fazia passar a carroça com os panelões pelo pavilhão e onde vinham batatas e couves a nadar em azeite. Era o que havia! A pouca carne que eles arranjavam eram os pombos que “roubavam” durante a noite no pombal.
Entretanto, o meu pai e o sócio resolveram montar uma pastelaria na Marinha Grande. Ainda hoje existe a pastelaria Flórida, que se situa na Embra, hoje em novo edifício. Em 1977, sou aconselhado a sair do colégio por falta de vocação religiosa, venho para a Mª Grande, onde estudo mais dois anos e, em 1979, cometo o erro muito comum de abandonar a escola e abraçar o mundo do trabalho.
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